domingo, outubro 03, 2004

3 e Última Parte do Conto

A palestra desviou-se para outros casos de enriquecimento e miséria. Mamelute não tomou mais parte nela. Parecia inquieto. De instante a instante dava uma olhada no relógio. De súbito, pôs na cabeça o barrete de castor, calçou as luvas e, saindo da cabana, foi rebuscar em seu depósito.

Quando voltou faltavam ainda quinze minutos para as quatro horas, mas, não podendo conter a impaciência, Mamelute foi sacudir Jack. O rapaz acordou tão ancilosado que foi preciso friccionar vigorosamente todo o seu corpo para que pudesse ficar de pé e caminhar. Mas quando saiu da cabana, teve a boa surpresa de encontrar os cães já atrelados e tudo pronto para a partida.

Todos lhe desejaram boa viagem. O padre abençoou-o, mas ninguém passou da porta porque era perigoso afrontar uma temperatura daquelas com as mãos e as orelhas. Mamelute, porém, abrigou-se e o acompanhou até à pista principal. Ali chegando, apertou vigorosamente a mão de Jack e lhe disse:

-Encontrarás cem libras de ovos de salmão no trenó. Isso dará mais vigor a teus cães do que cento e cinqüenta libras de peixes. Tomei essa providência porque provavelmente não poderás renovar as provisões em Pelly.

Jack estremeceu, mas limitou-se a olhar atentamente o outro, sem uma palavra. Mamelute continuou:

-Nada poderás obter antes de Five Fingers. Desconfia da água livre e vai- pelo atalho que passa
acima do lago ê Barge.
-Mas como pudeste adivinhar? Perguntou Jack É impossível que a notícia tenha chegado antes de mim.
-Eu de nada sei. . . nem quero saber. Mas o trenó que disseste perseguir nunca te pertenceu. Sitka Charley vendeu-o na primavera passada. Ele falou-me de ti como um homem leal e estou certo de que de fato o és. Raramente me engano e é suficiente olhar para teus olhos para saber que és um homem de bem. Vai. Não percas tempo . . . toca. . vai ter com tua mulher e teu filho. Não . . . não precisas me agradecer, concluiu Mamelute, vendo lágrimas gelarem-se sobre as faces de Jack. Não percas um minuto. Se algum cão cair, corta as correias e abandona-º Comprarás outro em Five Fingers e Hostarhigua. Não vaciles em pagar até dez dólares cada um.

Tinham-se passado apenas quinze minutos, quando o som dos guizos anunciou um novo viajante. Desta vez era um tenente da Policia Montada acompanhado por dois mestiços, encarregados dos cães. Como Jack, vinham armados até os dentes, mas o tenente ainda pouco habituado à pista, estava evidentemente exausto. Somente o amor-próprio e a tenacidade característica de sua raça permitiam-lhe manter-se de pé.

-Jack Westondale passou por aqui, não é verdade? perguntou ele.

A pergunta era inútil porque as marcas de sua passagem estavam ainda muito visíveis na neve. Mamelute piscou um olho para os companheiros e Belden, a quem o tenente se dirigia, limitou-se a fazer um gesto evasivo.

-Responda, insistiu o tenente. Ele roubou quarenta mil dólares de Henry MacFarland e trocou-os no P. B. Steel por um cheque sobre Scotle. Preciso alcançá-lo para que não o receba.

Todos se mantiveram em silêncio. Mamelute era o chefe, todos confiavam em sua experiência e seu sinal fora bastante para ditar sua conduta.
O policial, impaciente, dirigiu-se ao padre, que sendo sacerdote, não podia mentir.

- Há quanto tempo partiu?
- Há um quarto de hora, depois de ter dormido umas três horas.

O tenente desesperou-se:

- Um quarto de hora de avanço . . . e descansou! Maldição! Mas hei de agarrá-lo. Podem emprestar-me cinco cães?
Mamelute fez com a cabeça um movimento negativo.

-Compro-os. Dar-lhe-ei um cheque contra o capitão Constantino.

A mesma recusa silenciosa.

-Nesse caso, requisito-os para o serviço do Rei.

Mamelute, com um sorriso zombeteiro, colocou as mãos sobre os revólveres, que tinha ao cinto. O
inglês, compreendendo que nada obteria pela violência, dispôs-se a sair, e como os mestiços protestassem, alegando fadiga, insultou-os, chamando-os mulheres e cães.

- Pois vamos, disse um dos mestiços. Quer continuar? Pois continuemos. Vamos fazê-lo caminhar até que as pernas lhe faltem debaixo do corpo. Quando não puder mais, teremos prazer em deixá-lo na neve.
-Está bem, disse o jovem oficial. E, com uma energia que exigia toda a sua força de vontade, caminhou para a porta.

Todos apreciaram devidamente sua orgulhosa coragem e acompanharam com atenção os esforços dos mestiços para obrigar os cães extenuados a partirem de novo. Mas quando o barulho do trenó se perdeu a
distância, os companheiros de Mamelute não mais ocultaram sua indignação.

-Isso não se faz! Tu nos fizeste ajudar a um ladrão.

Estavam realmente furiosos, não só porque Jack os iludira mas porque violara a moral do Northland, onde a honestidade é exigida acima de tudo. Mamelute pediu silêncio com um gesto largo e começou

- Nunca um homem mais leal comeu em nossa mesa ou partilhou nossas cobertas. No outono passado, ele entregou a Joe Castrell tudo quando pudera arrancar da terra com um trabalho infernal: quarenta mil dólares, encarregando-o de comprar terras do Dominion. Se Castrell o tivesse feito, Jack estaria hoje milionário. Mas, enquanto Jack ficava em Cald City para não abandonar seu sócio atacado de escorbuto, que fez Castrell? Foi ao bar de MacFarland, jogou todo o dinheiro de Jack e perdeu-o. É verdade que estava bêbado. acFarland tivera o cuidado de começar por embriagá-lo. Quando recobrou o juízo Castrell estourou a cabeça com um tiro. Agora Jack não fez mais do que vingar-se e vingar o amigo leviano. E notem que tirou da gaveta do barman somente a quantia que lhe foi roubada.

O narrador calou-se. Todos os olhos cintilaram em torno dele; todas as cabeças acenavam sua
aprovação. Mamelute ergueu seu, copo e disse gravemente.

-Feliz Natal ao homem que vai esta noite pela pista. Que seus cães conservem seu vigor e que
seus fósforos não falhem.

Todos ergueram o copo e Belden acrescentou:

-E demônios levem a Polícia Montada, que não sabe compreender as coisas.


FIM

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